Beto não é apenas um cantor; é um narrador das vivências do seu povo.
Houve um tempo em que as montanhas não tinham nomes e os ventos sopravam por entre as árvores, sem saber que os seus sussurros eram músicas, que iria pousar nas cordas vocais de um menino ainda por nascer. As senhoras que subiam as colinas em busca de lenha caminhavam sob os galhos das acácias, de dezembro a janeiro, quando as festas de Santo Amaro anunciavam novos tempos. Nesse bairro, onde as ruas abrigavam histórias e esperanças, nascia uma criança destinada a marcar a alma de Cabo Verde com a sua voz e melodia. Nessa noite, até os galos e grilos entoaram cantos afinados, como se o universo soubesse que ali nascia alguém que iria traduzir saudades, amores e meditações musicais em canções.
Alberto “Beto” Dias, o menino que o mundo viria a conhecer como Beto Dias, emergiu como o vento que sopra, primeiro com fúria, depois como as boas águas de uma grande azágua de outubro, que percorre os outeiros da música cabo-verdiana. Nascido no Tarrafal de Santiago, foi nas terras de Ribeira da Prata que o seu espírito encontrou raízes profundas. Ali, começou a forjar a sua identidade, como um rio que esculpe o seu percurso através das rochas. O seu nascimento, dizem os mais velhos, foi acompanhado por um raro alinhamento cósmico — a lua repousou nos olhos de sua mãe, a verdadeira guardiã da sua essência. Foi ela quem o envolveu com o calor do seu colo e lhe ensinou a força do silêncio, uma força que mais tarde ele transformaria em melodia.
Ainda jovem, Beto partiu em busca do pai, deixando para trás a sua terra e a mãe, que, com lágrimas contidas, o viu seguir um caminho incerto rumo à emigração. Mas, mesmo longe, a sua essência jamais se desprendeu da terra que o viu nascer. Desde a infância, ele carregava no peito um vulcão de sons, uma inquietação que o levaria até à Holanda, onde encontrou uma nova vida sem nunca perder as suas raízes.
Foi lá, nesse exílio inevitável, que compôs Sin Sabeba, uma canção que se repercute como um hino entre gentes da terra e os emigrantes. A canção, que retrata a dor de quem abandona tudo em busca de uma vida digna, toca profundamente a alma de quem vive longe de casa. É uma canção que encapsula a saudade, o amor e a mágoa de deixar para trás a terra natal, a família e as memórias. Para muitos, Sin Sabeba tornou-se uma espécie de oração, entoada nas noites de solidão nos bairros distantes do estrangeiro.
Com a sua voz inconfundível, Beto Dias soube traduzir essa dor com autenticidade. Tornou-se um cronista do sentimento cabo-verdiano, e cada uma das suas canções é uma história viva, uma cicatriz que, em vez de se fechar, continua aberta, reabrindo memórias e dores profundas nas mentes e nos corações de quem as ouve. Ki Vida, uma das suas canções mais icónicas, fala de amor, de lutas e da busca incessante por uma vida juntos e em harmonia. Esta música explodiu nas rádios e televisões, marcando uma geração ávida por algo que fosse além da realidade quotidiana.
O perfeccionismo de Beto é lendário. Segundo amigos próximos, ele nunca se dá por satisfeito com uma música, mesmo quando parece perfeita aos ouvidos dos outros. Para ele, a música é o mais sério dos ofícios, uma tarefa que exige a sua total entrega, até à exaustão. O processo criativo, para Beto, é como um exercício de autodescoberta, uma forma de buscar algo mais profundo do que a simples melodia.
Nos anos 2000, tentou reunir o grupo Os Rabelados, numa tentativa de reviver a magia dos tempos passados. Contudo, como muitos sonhos no mundo da música, essa iniciativa sucumbiu às pressões da indústria. Cabo Verde, uma terra rica em cultura, mas escassa em recursos, muitas vezes coloca os artistas numa luta constante pela sobrevivência. Como tantos outros, Beto sentiu o peso dessa realidade. E, como Hipócrates disse certa vez, "A arte é longa, mas a vida é curta", uma lição que ele aprendeu ao longo dos anos.
Decidido a seguir uma carreira a solo, Beto Dias enfrentou o desafio de viver num país onde talento e sucesso muitas vezes dependem de um jogo implacável de promoção e visibilidade. Mas ele nunca cedeu às pressões. Para Beto, cada canção deve ser uma extensão da sua alma, um reflexo íntimo das suas verdades. Recusava-se a cantar músicas que não tivessem sido escritas por ele mesmo, acreditando que a música que não vem do coração não passa de um atrupido.
Beto não é apenas um cantor; é um narrador das vivências do seu povo. Em cada nota, ele deposita uma parte da sua história e da história de Cabo Verde, traduzindo os sentimentos de um povo que vive entre a saudade e a esperança. A música, para ele, não é apenas uma profissão, mas uma missão sagrada.
Com mais de seis álbuns lançados e parcerias com nomes icónicos da música cabo-verdiana, como Suzana Lubrano, sua ex-companheira, Beto continua a reinventar-se, mantendo-se fiel às suas raízes enquanto explora novas sonoridades. A sua música é uma catarse, uma forma de purificar as almas e atualizar as expectativas. Como Picasso dizia, "A arte lava a alma da poeira da vida quotidiana", e é isso que Beto Dias faz: oferece, através da sua música, um refúgio contra as dores e desafios da vida.
Beto Dias não finge a dor que canta, ele vive-a. E assim, com cada canção, continua a lavar as almas do seu povo, renovando a esperança, o amor e a luta, numa viagem musical que jamais deixará de ressoar nas ilhas daqui e nas ilhas de lá, que se constituíram em outros mundos da diáspora. Beto Dias viverá por mais mil anos.
Mário Loff
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