Quando ele fala de sua arte, há um brilho nos olhos que reflete sua paixão
Monte Iria, Tarrafal. Uma terra de ruas, antes estreitas, depois deitadas sob a barriga dos basaltos não mais altos que uma ideia de torão natal, mas cinzentos, lá, existe homens que fazem poemas que nascem roladas com a barriga no chão e de corações amplos, onde os olhares do passarinho se enlaçam com a brisa do mar a partir da descida dos pensamentos desde a graciosa. Foi ali, na década de noventa, que nasceu Nicolau de Barros Tavares – ou Patrick, como os amigos mais chegados o chamavam. A dança corria em suas veias antes mesmo que ele pudesse entender o significado dessa entrega que lhe corrompia a alma e nem sabia o nome, mas apontava o dedo para se saber que o corpo lhe ia para o meio da sala. Inspirado pelos movimentos de Michael Jackson, Nicolau sentiu-se irresistivelmente atraído pelo palco, onde o corpo, como diria Martha Graham, “é um instrumento através do qual a alma fala”.
Na escola, Nicolau não apenas absorvia algum conhecimento dos livros, mas também distribuía alegria em forma de movimento para que os colegas e professores se sentia alegres. Com gestos rápidos e fluidos, ele encantava professores e colegas, injetando vida em cada sala de aula. Era como se, a cada passo, ele desenhasse um universo invisível ao seu redor, uma dança contínua entre o visível e o não visto. Afinal, como já disse Isadora Duncan, “se eu pudesse dizer o que quero dizer, não haveria necessidade de dançar.” mas ele por dentro guardava alguma fome pronto para alimentar os sonhos e o mundo.
Ainda jovem, Nicolau encontrou seu caminho para o grupo Bibinha Cabral, uma verdadeira escola de vida. Sob sua tutela, ele aprendeu que a dança era mais do que técnica – era sobre contar histórias com o corpo, sobre partilhar sentimentos que as palavras não podiam alcançar. Com Bibinha, ele viajou, ganhou prêmios e foi além das fronteiras de Cabo Verde, levando a essência de sua cultura a palcos na Europa e América. “A dança”, como certa vez escreveu o filosofo alemão Friedrich Nietzsche, “é uma arte da qual o coração humano jamais se cansa”. E o coração de Nicolau nunca descansou, sempre pulsando ao ritmo da música e da vida. Na entrevista com ele, ele me disse que hoje o corpo já não é a mesmas coisa para as acrobacias de antes, agora, as acrobacias são outras, na Europa a vida nos obriga a tomar sentido e obrigações.
Mas, como muitos artistas, Nicolau também sentiu o peso da realidade. Ele sonhou em viver da dança, em seguir uma carreira internacional, mas faltou-lhe o apoio que transforma sonhos em realidade. “Se eu tivesse nascido em Portugal, viveria da dança”, confessa com um olhar de saudade. A vida o levou por outros caminhos, tornando-o um homem de família, mas a dança nunca o abandonou por completo. Ainda hoje, participa em videoclipes e colabora em performances, mantendo vivo um pedaço de sua identidade.
Porém, a dor da nostalgia é uma companheira constante. Ele lembra-se da vitória no concurso nacional de dança, um momento em que sentiu, por um breve instante, que o mundo se abria diante dele. “Ganhar aquele prémio foi fantástico”, diz ele, “como se eu pudesse tocar o céu com os pés.” Assim como o bailarino russo Rudolf Nureyev acreditava que “a técnica é o que permite que a dança ganhe asas”, Nicolau soube que sua técnica o levaria a lugares que ele nem imaginava. Mas as asas da realidade, às vezes, têm seus próprios limites, é que ele nasceu no norte da ilha grande e por vezes é bom ser cabo-verdiano, mas, só que alguns momentos é preciso rasgar o pensamento errático.
Nicolau também reflete sobre a cultura em sua terra natal e lamenta que, nos tempos de hoje, a dança e o teatro, que antes tinham uma voz forte, parecem ter sido relegados a um segundo plano. “A música ainda sobrevive, ha muitos festivais e é fácil fazer em Tarrafal por ter muitas estruturas de criar e fazer shows”, diz ele, “mas a verdadeira cultura, aquela que exige resistência, movimento, recriação, intelecto e reflexão, está quase morta.” Lembra-se de quando a cultura era vibrante, viva, com ensaios, agendas e apresentações regulares. Mas hoje, também, o cenário é diferente. “A internet trouxe visibilidade, mas também tirou o palco dos verdadeiros artistas”, observa com uma ponta de amargura. Ele cita grandes artistas que, em outros tempos, não se importariam com cliques e visualizações, mas com o ato sagrado de criar.
Já que estamos na semana do aniversário dele não é demais referir a um dos grandes pensadores africanos, Amílcar Cabral, uma vez afirmou: "A cultura não é uma simples construção de formas de expressão artística; ela é, antes de tudo, um compromisso com a criação e a libertação do ser humano." Para Nicolau, a cultura no Tarrafal tem se perdido nessa dimensão essencial de resistência e liberdade. O palco, que antes oferecia uma forma de expressão autêntica e sem filtros, hoje luta por sobrevivência em meio à superficialidade digital.
Apesar das adversidades, Nicolau mantém um sonho: criar um grupo de dança onde possa passar tudo o que aprendeu para as novas gerações. Ele vive em um bairro onde a dança ainda corre nas veias da juventude, onde os corpos se movem ao ritmo de Cabo Verde desde a infância. “Aqui, as pessoas já nascem dançando”, diz ele, com esperança. Seu objetivo é simples e poderoso: preservar a dança tradicional de Cabo Verde e criar um espaço onde a arte possa florescer.
Nicolau sabe que o futuro da dança está nas mãos daqueles que ainda ousam sonhar. “A dança é a mãe de todas as artes”, escreveu o poeta Paul Valéry. “Porque é através dela que o corpo se torna parte de uma criação.” E é com esse espírito que Nicolau continua, um dançarino que, apesar dos desafios, nunca deixou de acreditar que, através do movimento, ele pode transformar o mundo ao seu redor.
Histórias como a de Nicolau nos fazem lembrar de outros grandes artistas que enfrentaram adversidades semelhantes. Um exemplo inspirador é o de Vaslav Nijinsky, um dos maiores bailarinos do século XX, cuja vida foi marcada por uma intensa luta interna e a ausência de reconhecimento em seus últimos anos. Mesmo assim, ele revolucionou o balé com sua visão inovadora. Da mesma forma, Nicolau se vê como um pioneiro silencioso, igual a muitos outros em outras areas, alias, em Tarrafal se faz a gala de todos os géneros e na cultura nunca se fez uma gala, e é a area que mais tem vultos em representação do nosso município, contudo ainda deseja deixar mais marca indelével na dança de Cabo Verde.
Quando ele fala de sua arte, há um brilho nos olhos que reflete sua paixão. “A vida é como a dança. A gente segue os passos até que, de repente, o ritmo muda, mas você precisa continuar dançando, de uma forma ou de outra”, diz Nicolau, citando Martha Graham mais uma vez sem saber que ela é a autora. E, assim como Graham, Nicolau também acredita que “um grande dançarino não é ótimo por causa de sua técnica, mas por sua paixão.”
Ele deseja, mais do que tudo, ser reconhecido em sua terra. Não para alimentar o ego, mas para que saibam que o legado da dança, aquele que ele ajudou a construir, não foi em vão. “Não havia ninguém como eu”, ele afirma, não com arrogância, mas com a confiança de quem dedicou a vida à sua arte. Ele sabe que sua história é feita de suor, esforço e entrega, mas também de uma beleza que transcende o tempo.
No final das contas, a dança de Nicolau não é apenas sobre passos no palco. É sobre vida, resistência e sobre encontrar beleza mesmo quando as luzes se apagam. Como certa vez disse o poeta angolano Agostinho Neto: "A luta pela cultura é a luta pela vida." E Nicolau, com certeza, é um daqueles que, em cada movimento, luta para manter viva a essência de sua arte, movendo-se com a leveza de quem sabe que, enquanto houver ritmo no coração, a dança nunca cessará. Ainda agradece a professora Any e Cristino e manda um abraço a todos os seus ex colegas de liceu.
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