eu remendava-me a alma nas conversas de quem não conhecia
Os Semáforos do amor
Há sensivelmente dezasseis anos que deixei Terra Branca, o lugar onde morei nos tempos da universidade. Morávamos catorze numa casa cheia de cabo-verdianos. A casa tinha duas grandes salas e quatro quartos, e o país tem dez ilhas. Cada uma poderia ser uma casa, onde vivem pessoas de quase todas as ilhas.
Na nossa casa, uns vinham pernoitar, outros à espera de consultas médicas, e eu remendava a alma nas conversas com desconhecidos. Gradualmente, deixava-me levar pelas ilhas através das suas palavras e pelo íntimo de cada detalhe que perguntava. Chamavam-me de "retalhista do norte" por ser de Tarrafal. Juro que nunca entendi este tal de "retalhista".
Isso marca as pessoas. Falar com quem acredita que tudo vai acabar em breve e que a vida vale a pena nessas conversas com estranhos. Alguns deles sentiam a alma a querer sair pelos olhos, e o estômago falava em linguagens cancerígenas. Conheci-os a todos pelas maleficências das doenças. Estávamos em 2008. A senhora reclamava da INPS, com um tubo longo e fino que lhe atravessava as costelas. Três em três dias, fazia hemodiálise na companhia do amigo Binho, um repatriado dos "estaites".
Outros dias amanheciam fracos, quase sem nome, desejando aguentar a mão numa coxa do mundo. Pouco ou nada podiam fazer, a não ser nas esperadas insistências de mandar o Binho comprar pães e frutas. Nem comiam tanto, nem se lembravam de se alimentar. Já habitava neles a desconfiança de que tudo no corpo e no sangue estava doente por terem comido coisas com linguagens estranhas e com o.tempo se ajustaram a linguagem da morte. Parecia uma descoberta aparente.
Se não fosse pela minha insistência, que lhes atravessava a boca e a cabeça em conversas insistentes de manhã e de tarde, nem me lembrava deles. Hoje, ao saber que nenhum dos amigos morreu, mas que faleceu o dono da casa, lembro-me de como por vários momentos lhes perguntava o que iriam dizer ao Todo-Poderoso quando chegassem ao outro lado do confinamento.
"O senhor é mesmo um badiu chato," diziam com raiva. Perguntava-lhes se aquilo que diziam era por terem raiva ou se era o medo da luz que se acende lá no fim da rua.
— Neste caso, estás a referir-te ao fim da vida. Fez-se um grande silêncio até ao final do dia. Na volta a casa, ficou a imaginar à espera que se acendesse o semáforo na rotunda de alguma vida largada na fazenda.
— Não, meu filho, a raiva não é para ti nem por ti. Por que tenho que sofrer assim? Esse tubo fino que me atravessa os pulmões e o pensamento a INPS que atrapalha nas transações de medicamentos, a minha dependência em relação aos outros... Em tempos, isso azarava o fundamental de um homem. Ela desaperta os cabelos e lança-os pela cara e pelas costas. Num olhar escondido, vi a ponta de lágrimas a cair. Parecia demorar para tocar o chão, mas era uma finitude que regava a terra seca saindo de um corpo que resiste em se ceder.
— É preciso manifestar contra o amor, é preciso, em tempos de força no corpo, manifestar contra os semáforos do amor. Saber a hora do sinal verde, a hora do sinal vermelho, a hora do sinal azul. Eu nem sei em que sinal estou. Posso morrer a dizer a próxima palavra, mas aposto que neste momento alguém morre. Ninguém sabe quando é a hora exata da sua morte.
Essa angústia que nos mata lentamente, e esse tubo que me parte a existência. Os pães e as frutas eram para os meninos que dormiam ao relento na rua ao lado da casa. De dia, traficavam pedra e as suas desgraças. Contudo só falar com estranhos as vezes é isso, parar em uns semáforos do amor.
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