Adoro o facto de poder dizer que tenho três filhas crioulas, as três com o umbigo enterrado na cidade do Mindelo
Carta aberta às minhas filhas
Laura, Inês e Isabel
Escrevo esta carta com o meu coração apertado porque quero pedir-vos desculpa. Por causa de outras coisas que já explico, cimentadas nesta minha mania de querer mudar o mundo, porque sei que podia ser - mais do que estar - um pouco mais presente nas vossas vidas. Sempre serei aquele pai babado, orgulhoso dos vossos percursos, que ainda agora estão a começar. Adoro o facto de poder dizer que tenho três filhas crioulas, as três com o umbigo enterrado na cidade do Mindelo, um dos berços da crioulidade atlântica, a cidade de todas as cores, de todos os sons e de todos os movimentos.
Peço desculpa de não ser aquele dedicado funcionário púbico que sai de casa às 08h00, para regressar às 18h00, com pausa para o almoço. Peço desculpa por não ter alguma outra profissão que me permitisse estar mais tempo com vocês, ainda que esse tempo, no meu caso e com elevado grau de probabilidade, não fosse um tempo feliz como é aquele que vivo desde que descobri que o teatro e a arte é parte importante da minha vida.
E sim, peço desculpa por o teatro ser parte importante da minha vida. Por serem 22h34 e eu ainda estar longe de vocês, por vos ter feito viver num ambiente com tanta gente um tanto ou quanto perturbada, que passa o tempo a decorar textos estranhos, a vestir roupas nada-a-ver, a fazer figuras parvas em frente aos outros que lá vão só para nos ver e acreditar que o facto de fazermos isso poderá fazer alguma diferença no coração dos homens.
E sim, peço desculpa pelos sonhos, pelo tempo investido nesses sonhos, que servem, em primeiro lugar, muitas crianças como vocês, crianças que não tiveram essa possibilidade de viver num ambiente onde se houve música diferente daquela que ouvimos todos os dias, onde os pais tem livros nas prateleiras (e os lêem!), onde se dança e grita e canta sem mágoas nem complexos, onde se desenha nas paredes sem medo de estragar, onde se pode comer com as mãos, sujar a roupa e rir de tudo isso com gosto.
Peço desculpa pelas infinitas horas de ensaio, de trabalho de produção, de tabelas, de reuniões, de encontros com outros artistas que ali estão comigo e provavelmente também deixaram algures com outras pessoas filhos e filhas como vocês. Peço desculpa pelos festivais, pelas academias, pelas aulas em horário nocturno, pelas horas mal dormidas, pelas entrevistas em que nos tentamos convencer mais a nós próprios do que a quem nos vê, ouve ou lê de que vale a pena todo este tempo que nunca devemos dar como perdido.
Peço desculpa pelas lágrimas e pelas maledicências semeadas sobre a nossa vida que inevitavelmente encontram em lugar pequeno terreno fértil para germinar. Peço desculpa por não vos dar uma vida um pouco melhor, por não ter sido um advogado de sucesso ou até um engenheiro agrónomo, que por muito pouco não fui. Por não ter sido um médico ou um homem de negócios bem sucedido.
Peço desculpa, filhas do meu coração, por continuar acreditar que vale a pena. Que o que faço é também, e sobretudo, para vocês que ficarão além de mim neste mundo cada vez mais desumano, violento e sangrento. Que o que faço serve o propósito de nos alimentarmos de algo que é o que nos separa da loucura do tempo que passa, que só a arte nos pode manter nesta esfera do humanismo, que só a poesia nos permite olhar os vossos olhos e sentir um arrepio e uma lágrima, que nos faz sorrir e nos alimenta para as horas que se seguem.
Peço desculpa por acreditar. Ainda assim, nunca duvidem, meu coração é todo vosso.
Este pai que vos ama, João.
Laura, Inês e Isabel
Escrevo esta carta com o meu coração apertado porque quero pedir-vos desculpa. Por causa de outras coisas que já explico, cimentadas nesta minha mania de querer mudar o mundo, porque sei que podia ser - mais do que estar - um pouco mais presente nas vossas vidas. Sempre serei aquele pai babado, orgulhoso dos vossos percursos, que ainda agora estão a começar. Adoro o facto de poder dizer que tenho três filhas crioulas, as três com o umbigo enterrado na cidade do Mindelo, um dos berços da crioulidade atlântica, a cidade de todas as cores, de todos os sons e de todos os movimentos.
Peço desculpa de não ser aquele dedicado funcionário púbico que sai de casa às 08h00, para regressar às 18h00, com pausa para o almoço. Peço desculpa por não ter alguma outra profissão que me permitisse estar mais tempo com vocês, ainda que esse tempo, no meu caso e com elevado grau de probabilidade, não fosse um tempo feliz como é aquele que vivo desde que descobri que o teatro e a arte é parte importante da minha vida.
E sim, peço desculpa por o teatro ser parte importante da minha vida. Por serem 22h34 e eu ainda estar longe de vocês, por vos ter feito viver num ambiente com tanta gente um tanto ou quanto perturbada, que passa o tempo a decorar textos estranhos, a vestir roupas nada-a-ver, a fazer figuras parvas em frente aos outros que lá vão só para nos ver e acreditar que o facto de fazermos isso poderá fazer alguma diferença no coração dos homens.
E sim, peço desculpa pelos sonhos, pelo tempo investido nesses sonhos, que servem, em primeiro lugar, muitas crianças como vocês, crianças que não tiveram essa possibilidade de viver num ambiente onde se houve música diferente daquela que ouvimos todos os dias, onde os pais tem livros nas prateleiras (e os lêem!), onde se dança e grita e canta sem mágoas nem complexos, onde se desenha nas paredes sem medo de estragar, onde se pode comer com as mãos, sujar a roupa e rir de tudo isso com gosto.
Peço desculpa pelas infinitas horas de ensaio, de trabalho de produção, de tabelas, de reuniões, de encontros com outros artistas que ali estão comigo e provavelmente também deixaram algures com outras pessoas filhos e filhas como vocês. Peço desculpa pelos festivais, pelas academias, pelas aulas em horário nocturno, pelas horas mal dormidas, pelas entrevistas em que nos tentamos convencer mais a nós próprios do que a quem nos vê, ouve ou lê de que vale a pena todo este tempo que nunca devemos dar como perdido.
Peço desculpa pelas lágrimas e pelas maledicências semeadas sobre a nossa vida que inevitavelmente encontram em lugar pequeno terreno fértil para germinar. Peço desculpa por não vos dar uma vida um pouco melhor, por não ter sido um advogado de sucesso ou até um engenheiro agrónomo, que por muito pouco não fui. Por não ter sido um médico ou um homem de negócios bem sucedido.
Peço desculpa, filhas do meu coração, por continuar acreditar que vale a pena. Que o que faço é também, e sobretudo, para vocês que ficarão além de mim neste mundo cada vez mais desumano, violento e sangrento. Que o que faço serve o propósito de nos alimentarmos de algo que é o que nos separa da loucura do tempo que passa, que só a arte nos pode manter nesta esfera do humanismo, que só a poesia nos permite olhar os vossos olhos e sentir um arrepio e uma lágrima, que nos faz sorrir e nos alimenta para as horas que se seguem.
Peço desculpa por acreditar. Ainda assim, nunca duvidem, meu coração é todo vosso.
Este pai que vos ama, João.
COMMENTS