Texto de David Leite, publicado no dia 12 Abril, no facebook
Fotografia tirada hoje, por volta das 19h00. A esta hora estas pessoas estarão a dormir. Ou talvez não. Vão passar a noite à porta da Embaixada de Cabo Verde em Paris, e dormir na rua não é fácil! Muitas outras vão chegar. Sorte se alguém tiver carro, e felizmente que está bom tempo esta noite.
Quase todos os dias é assim: caboverdeanas e caboverdeanos a dormirem ao relento, às vezes debaixo de chuva, por um pedaço de papel! De manhã, olheiras e cartões improvisados em colchão denunciam uma injúria que ninguém merece. E nem todos serão atendidos, muitos talvez tenham que voltar para mais uma noite ao relento!
O que explica esta situação? A população caboverdeana em França aumentou exponencialmente nos últimos anos, e nada foi feito para adequar as condições de atendimento à nova realidade. Quando os utentes pedem "rendez-vous", pode ser para seis meses depois! De tanto perderem um dia de trabalho para nada, uns vêm de véspera "acampar" à porta da Embaixada porque a falta de um documento pode custar-lhes o emprego! Vi mulheres grávidas, crianças guardando lugar para os adultos. Pessoas que enviam dinheiro para as famílias em Cabo Verde e fazem viver um serviço público. Deixaram a sua terra por uma vida melhor, e ei-las que dormem na rua à porta da sua própria Embaixada!
E eu carregando esta vergonha todos os dias quando entro e saio do trabalho! Sou funcionário dessa Casa mas tenho vergonha! Os funcionários têm vergonha. Como não sentir vergonha no meio desse Cafarnaum, cartões pelo chão, da polícia que já chegou a desembarcar como em estado de guerra, dos vizinhos assustados a perguntarem o que é isto?
Mas esta vergonha não é minha. Represento a minha bandeira de cabeça erguida, com orgulho, para vê-la brilhando como uma estrela na constelação das nações que respeitam os seus filhos.
Esta vergonha não é comigo porque toda a minha vida pugnei por não dever nada a ninguém, nem mesmo a um banco, não mexi no alheio, vivi com aquilo que tinha... para vir carregar vergonha dos outros!
Tanto alertar, tanto propor, tanto dar ideias no tempo da "outra senhora" que não escutava ninguém... Desprezo total, como para deixar o pior legado aos vindouros.
E os vindouros, o que fizeram? Promessas! Se promessa fosse comida, os caboverdeanos em França estariam obesos!
Falta de verbas? Se hoje há três vezes mais de utentes, aritmeticamente as receitas multiplicaram por três! Mas vamos ao busílis da questão: aumentar o pessoal de atendimento consular implica repor os direitos dos que já lá estão, vítimas de monstruosas ilegalidades que atropelam todas as leis do trabalho, em França como em Cabo Verde. E somos nós um Estado de direito!
Esta vergonha não é dos funcionários explorados, sub-remumerados, escamoteados nos seus direitos mais elementares, sem certeza da reforma devida a todo aquele que trabalha! Que não poupam esforços para atender a todos quanto possível, dando da sua pessoa, calando-se por patriotismo ou por medo de represálias.
Funcionários cuja segurança está em perigo porque eles é que dão a cara pelos responsáveis que, quando passam, é só promessas. Funcionários que tentam salvar uma imagem que se degrada enquanto os (ir)responsáveis, nem aí!
Atrás dos belos discursos de campanha ou de circunstância, é de bradar aos céus o desprezo pelos caboverdeanos em França. Em 22 anos de Paris, nunca vi tanta desconsideração, dentro e fora da Embaixada. Tanta indolência, tanta indiferença, clamam por medidas, se não quisermos caminhar para um colapso.
Represento a minha bandeira, não represento vergonhas ! Entre calar-me para poupar o funcionário e falar para salvar a honra do cidadão, a minha escolha é clara. Optei pela indignação porque sou cidadão antes de ser funcionário. Sou humano antes de ser peça de uma engrenagem que, se não for reparada com urgência, corre o risco de calcinar e parar.
Sei que muitos vão pedir a minha cabeça. Mas de bom grado dou de presente a minha ausência e vou-me embora para casa! É só acertar as contas para que ninguém fique a dever nada a ninguém. Esta vergonha é que eu não carrego! Porque ela não é minha!
Esta noite há caboverdeanos como eu dormindo na rua por um pedaço de papel! Boa noite conterrâneos, e até amanhã.
Mantenhas da terra-longe, 12 de abril de 2017"
David Leite
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