fotografia de Helder Doca. Violência no estado sólido, texto publicado por João Branco A dois dias de estrear este espetáculo recebi ...
A dois dias de estrear este espetáculo recebi as provas de um livro sobre o trabalho de ator que tinha, entre muitas outras preciosidades, esta frase de Fernando Amado, pedagogo e professor de teatro: “o teatro é alma humana revolvida até às entranhas.” Achei uma curiosa coincidência, ou talvez não, que isto me tenha surgido depois de, durante quatro semanas, ter saído dos ensaios da biblioteca do Centro Cultural Português com as minhas entranhas revolvidas. Pela temática escolhida, pelas cenas seleccionadas, pela energia que se acumulava num espaço mínimo, com vinte e um intérpretes criadores, mais do que alunos de teatro, seres humanos, vivendo num país concreto – Cabo Verde – e numa ilha específica – S. Vicente.
Não tenhamos ilusões: a violência é intrínseca à condição humana. Basta pensarmos no maior dramaturgo de todos os tempos, William Shakespeare, que viveu num outro continente, numa outra era, e foi um mestre no tema. Quem conhece a obra do genial bardo inglês lembra-se de Titus Andronicus, cuja última montagem no Global Theatre de Londres, em 2014, fez com que vários espectadores, enjoados e sem conseguir aguentar o banho de sangue que se desenrolava à sua frente, abandonassem o teatro, o que não impediu que a temporada tivesse sido um sucesso, com todas as sessões esgotadas. A brutalidade da peça é tão extrema - terminando com a infame cena em que uma mãe é obrigada a comer pedaços de seus próprios filhos, que a plateia ficou atordoada. Por alguns instantes, após fechar as cortinas, as pessoas não conseguiam reagir, sem saber se deviam aplaudir ou simplesmente deixar o teatro em silêncio. E por alguma razão Shakespeare é reconhecido como o maior retratista da alma humana.
Isto para dizer que o que estamos a encenar não é um exclusivo de Cabo Verde ou do Mindelo. Existe em todo o lado. No entanto, o que nos incitou a tratar um tema tão difícil foi essa nossa tendência de minimizar os defeitos, pintar a realidade em tons cor-de-rosa, enfiar a cabeça na areia ao som de uma morna e gritar aos quatro ventos que somos o país da morabeza, onde não há ouro nem diamantes, mas há essa paz de Deus, que “na mundo ka tem”, como tão bem cantou Cesária Évora. E sair pelas ruas aos pulos, a comemorar um Carnaval de Verão ou preocupados com a roupa que vamos usar numa party I Love qualquer coisa.
Infelizmente, a realidade bate-nos à porta para lembrar que não somos assim tão diferentes. Promovemos uma cultura de aparente segurança, com policias especiais de caras tapadas, armados até aos dentes que saem enfileirados pelas ruas da cidade vestidos de negro, por alguns cidadãos reconhecidos como uns heróis justiceiros, e proclamamos a melhoria dos dados estatísticos em matéria de combate à criminalidade, ao mesmo tempo em que um dos nossos atores é assaltado depois de um ensaio, por um individuo que nem se preocupou em tapar a sua cara, lhe encostou uma faca ao pescoço, lhe roubou os poucos pertences que tinha e o ameaçou de morte em caso de resistência.
Mal ou bem, todos os episódios retratados ou mencionados neste espetáculo aconteceram na realidade. Em vários deles, membros do elenco foram vitimas ou testemunhas diretas. Daí a dificuldade deste trabalho e de todo o processo criativo. Foi para nós importante ter presente que não quisemos nunca ter graça ou fazer piada com o sofrimento dos outros, porque somos testemunhas de episódios diários em que cidadãos fazem piada com a violência que o vizinho sofre, ou são meros espectadores ou assumem o discurso de responsabilizar a vitima pelo sucedido. Porque fizemos então, este espetáculo? Porque não queremos calar. Porque queremos gritar. A nossa sociedade está doente. Aqui, no Mindelo, a dois passos da Praça Nova, lugar nobre e central da nossa cidade, seres humanos foram violados, esquartejados e os seus pedaços enfiados numa mala. Aqui, no Mindelo, um jovem morreu, provavelmente porque não lhe foi prestada assistência por quem passava de carro, depois de um assalto em que tinha sido esfaqueado. Aqui, no Mindelo, um homem foi assassinado com tal violência, que a sua cara ficou totalmente desfigurada, por causa de um surto de pontapés desferidos sem dó nem piedade. Aqui, no Mindelo, mulheres são abusadas, violentadas, agredidas, física e verbalmente, em cada rua, em cada esquina, em cada casa. Aqui, no Mindelo, aumentam os casos de crianças que sofrem de abusos, sexuais e outros, na
maioria dentro das suas próprias casas. Aqui, no Mindelo, continuamos a assistir, sem nada fazer, a episódios em que pais agridem fisicamente os seus filhos em locais públicos.
E quem é responsável por esta situação? Somos todos, temos consciência disso. Somos todos responsáveis. Com Morabesta tentamos fazer a nossa parte. Uma coisa é certa: este foi um processo que mudou um pedaço de nós, que nos abriu os olhos, que nos despertou. A criança que pede esmola à porta do supermercado, subitamente, deixou de ser invisível aos nossos olhos. Só por isso já valeu a pena. E queremos ajudar a combater esta violência sólida que vive entre nós. Porque como escreveu Jean-Paul Sartre, a violência, seja qual for a maneira como ela se manifesta, é sempre uma derrota.
fonte:http://joaobranco.weebly.com/-blogue/violencia-no-estado-solido